Bem que a gente podia fazer uma reforma para valer, não
essas dos políticos e dos papéis, mas alguma coisa pessoal. Vital. A reforma
das nossas prioridades. Cansei de ouvir todo mundo reclamando que não tem tempo
nem pra respirar, nada mais de conversas à mesa, nada mais de passeio tranqüilo,
muito menos de sossego em família. Amantes, namorados, casais, amigos, todo
mundo corre afobadíssimo para cumprir mil tarefas: das quais certamente
novecentos e noventa seriam dispensáveis se a gente examinasse direito.
Tempo é
dinheiro, diziam os pragmáticos, e isso se tornou lei universal. A conta do
banco, o colégio dos filhos, o plano de saúde (num pais onde o INSS é meio
suicídio andado), o restaurante e o bar, a roupa de grife e a bolsa, até a
mochila escolar do momento, sem a qual, é claro, o filho não garante nem que
consiga passar de ano. A lista é longa, segundo a preferência de cada um. Fico
imaginando que se a gente fizesse uma faxina em nossos compromissos e deveres,
boa parte desapareceria ligeiro no ralo do bom senso, e desapareceria para todo
o sempre no nebuloso das nossas iniquidades mais banais. Sobrariam alguns
compromissos, dos quais não há como fugir: provavelmente saúde, prestação do
apartamento, escola (a pública estando como está) e alguns outros (poucos).
Comprar não é um dever, quando não se trata do indispensável ou do que faz bem.
Comprar pode ser, e tem sido, em grande parte moda, mania, quase neurose. Andar
com a roupa do momento pode ser burro e pobre: por que todas as meninas
parecendo fantasiadas para desfilarem no mesmo bloco? Por que todas com a mesma
sandália só porque alguém na televisão...? Por que pais e mães se sacrificam
para poderem dar aos meninos alguns absurdos caros, talvez ridículos? Não quero
que meus netos e netas andem muito diferentes de sua turma.
Mas não desejaria
que seus pais trabalhassem mais horas do que o necessário para lhes permitir
algumas insanidades. Não acho que os casais precisem ter apenas, para seu
encontro, as poucas horas da noite, exaustos do dia intenso, da hora extra,
quem sabe até do trabalho no fim de semana. Se for para sobreviver com
dignidade, paciência: muitas vezes tem de ser. Mas muitíssimas vezes não
precisaria ser assim.
Labutamos como animais para além do que seria humano, e
para aquilo que nem é importante: para o fútil excessivo (um pouco de
futilidade, sim, ou nos desumanizamos), para o mais do que tolo (um pouco de
tolice, sim, ou viramos estátuas). Uma hora menos de trabalho extra por dia -
não vou poder comprar aquele tênis importado caríssimo, o menino vai emburrar -
pode significar uma hora de carinho, de convívio a mais. Um fim de semana menos
de trabalho extra - mas como vou dar aquela roupa caríssima, a menina vai se
frustrar, e tem o cursinho de inglês, e o de nem lembro o quê... e a mulher
quer aquelas férias naquele hotel caro, e chegou a hora de trocar o carro... -
pode representar um encontro onde a gente vai enxergar de verdade o filho, o
irmão, a amante, o marido, o amigo.
Ou a si mesmo, ficando quieto na rede, na
praça, até na cama, pensando. De bobeira. Olhando a nuvem, o galho de flor pela
janela, deitado na grama ou na areia com a cara no sol, sentindo o mundo
respirar, e fazendo parte desse ritmo imenso. Sentindo que somos gente, dentro
de algo misterioso chamado vida. Reformulando nossos planos, tentando saber o
que queremos para nós. Muito do que gastamos (e nos desgastamos) nesse
consumismo feroz podia ser negociado com a gente mesmo: uma hora de alegria em
troca daquele sapato.
Uma tarde de amor em troca da prestação do carro do ano;
um fim de semana em família em lugar daquele trabalho extra que está me matando
e ainda por cima detesto. Não sei se sou otimista demais, ou fora da realidade.
Mas, à medida que fui gostando mais de meus jeans, camisetas e mocassins, me
agitando menos, querendo ter menos, fui ficando mais tranqüila e mais
divertida. Sapato e roupa simbolizam bem mais do que isso que são: representam
uma escolha de vida, uma postura interior. Nunca fui modelo de nada, graças a
Deus. Mas amadurecer me obrigou a fazer muita faxina nos armários da alma e na
bolsa também. Resistir a certas tentações é burrice; mas fugir de outras pode
ser crescimento, e muito mais alegria.
Cada um que examine o baú de suas prioridades, e faça a
arrumação que quiser ou puder. Que seja para aliviar a vida, o coração e o
pensamento - não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos
estéreis e mortais.
Lia Luft in "Pensar É Transgredir"
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